Artigo aborda a legitimidade e as atribuições do Conselheiro Tutelar no combate ao trabalho infantil

"Conselheiro Tutelar – ator primordial no combate ao trabalho infantil"

 A Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) é o documento que reconhece, nomeia e codifica os títulos e descreve as características das ocupações do mercado de trabalho brasileiro.

A CBO 5153-20 diz respeito à ocupação de Conselheiro Tutelar e informa que tal ocupação visa a garantir a atenção, defesa e proteção a crianças e adolescentes em situações de risco pessoal e social. Os Conselheiros Tutelares são, em outros termos, agentes que procuram assegurar os direitos da criança e do adolescente, abordando-os, sensibilizando-os, identificando suas necessidades e demandas e desenvolvendo atividades e tratamento.

A CBO nos informa, ainda, que o trabalho desses atores é exercido em instituições ou nas ruas; que as atividades são exercidas com alguma forma de supervisão, geralmente em equipes multidisciplinares; que os horários de trabalho são variados: tempo integral, revezamento de turno ou períodos determinados; que os trabalhadores desta família ocupacional lidam diariamente com situações de risco, assistindo a indivíduos com alteração de comportamento, agressividade e em vulnerabilidade (Fonte: mtecbo.gov.br).

Em termos jurídicos/legais, a previsão da referida ocupação está no artigo 131 do ECA e nasceu da necessidade de se cumprir, de se concretizar e de se implementar os direitos fundamentais estabelecidos no artigo 227 da Constituição Federal de 1988. A existência de um órgão permanente, autônomo e não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes é fundamental e imprescindível para o alcance do rol dos direitos fundamentais ali previstos.

Socialmente, o Conselho Tutelar tornou-se uma das primeiras instituições da democracia representativa, ou seja, um órgão garantista da exigibilidade dos direitos assegurados nas normas internacionais, na Constituição e nas leis voltadas à população infanto-juvenil. Assim, o Conselho Tutelar exerce, sem dúvida, uma política de atendimento voltada à criança e ao adolescente, para fins específicos.

Roberto João Elias entende que o Conselho Tutelar é, por excelência, o órgão que representa a sociedade, uma vez que seus membros são por ela escolhidos para atribuições relevantes perante todos os membros da sociedade, mas. Principalmente. Para as crianças e os adolescentes. Por isso, não é meramente um órgão que requisita serviços, mas sim identifica as vulnerabilidades e busca tratá-las na dimensão e especialidade que merecem.

Munir Cury acrescenta que o Conselho Tutelar recebe o encargo de atender a crianças e adolescentes que estejam em situação de risco pessoal e social em razão de seus direitos terem sido ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado. Assim, o Conselho Tutelar é um verdadeiro “Procon” da área da infância e adolescência.

Cabe, ainda, ao Conselho Tutelar promover a execução das suas decisões, podendo, para tanto, tomar diversas providências, como requisitar serviços públicos nas áreas da saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança para que as crianças e os adolescentes tenham seus direitos sociais garantidos.

O Conselho Tutelar, tendo conhecimento de informações da existência de infração administrativa ou penal contra criança ou adolescente, deve comunicá-las ao Ministério Público para providências cabíveis. Tais informações chegam ao conhecimento do Conselho Tutelar dentro de uma rotina ordinária de identificação pelo Conselheiro Tutelar, na forma estática (informações que chegam até a sede do Conselho) ou na forma dinâmica (informações colhidas durante as diligências dos Conselheiros).

Cabe ressaltar que todas as medidas tomadas pelo Conselho Tutelar embasadas no artigo 136 do ECA não são taxativas, podendo surgir outras soluções, sempre no melhor interesse da criança e do adolescente.

Dessa forma, diante de qualquer situação de vulnerabilidade, risco ou ameaça aos direitos da criança e do adolescente, nasce a legitimidade e obrigatoriedade do Conselho Tutelar em agir e atuar para que os princípios da proteção integral e prioridade absoluta sejam garantidos e concretizados.

O trabalho infantil, aquele desempenhado por pessoa abaixo de 16 anos de idade, é considerado pela legislação nacional e internacional uma lesão/violação dos direitos da criança e do adolescente; portanto, deve ser combatido por todos, em especial, pelo Conselho Tutelar. Todo ser humano tem o direito fundamental ao NĀO trabalho até 16 anos de idade, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos de idade ou na condição de trabalhador infantil artístico com autorização judicial específica (aqui, qualquer idade).

Infelizmente, em um país em que a desigualdade social impera, o trabalho abaixo da idade mínima (16 anos) ainda é visto pelo senso comum – de forma errônea, por óbvio – como uma alternativa à miserabilidade e à marginalidade e, muitas vezes, esse senso comum impacta a atuação do próprio Conselheiro Tutelar (visto que, como dito, este representa a sociedade), o que gera uma grande deficiência no combate desta mazela social. Se o “soldado” de frente (Conselheiro Tutelar) não consegue identificar o “inimigo”, toda a atuação do restante do sistema de garantia de direitos (CRAS, CREAS, MPE, MPT, Justiça) fica comprometido, pois a rede não será acionada a tempo e na proporção que foi planejada.

O papel do Conselheiro Tutelar não é, portanto, o de agente fiscalizador de empresas que exploram mão de obra infantil, tocando esta tarefa ao auditor fiscal do trabalho. O papel do Conselheiro Tutelar é, pois, o de agente identificador do trabalho infantil. O Conselho Tutelar deve estar apto a saber identificar a situação de trabalho infantil e, a partir de tal identificação, colher dados (nome da empresa, localização, nome da criança/adolescente) para que possa acionar a rede de proteção, requisitar serviços e notificar ao Ministério Público do Trabalho (aqui mediante simples relatório). Tal aptidão envolve não só a sua capacidade técnica (esclarecimento e conhecimento sobre o tema), como também a sensibilidade com a matéria e o empoderamento de sua atribuição (tomar para si/incorporar a função de identificador da mazela e garantidor de direitos).

Há a necessidade, também, de que o Conselheiro Tutelar conheça todos os atores da rede de proteção do seu município (CMDCA, CRAS, CREAS, diretores e professores de escolas, agentes comunitários de saúde, promotor de Justiça, juiz da infância, juiz do trabalho e procurador do Trabalho, entre outros), bem como conheça as alternativas existentes no município que podem ser ofertadas para solução do problema (SCFV, escola em tempo integral, projetos sociais na aérea de esporte e cultura, vagas de aprendizagem), para que, assim, possa requisitar serviços específicos, buscando sempre a não revitimização.

Infelizmente, alguns Conselheiros Tutelares têm um olhar equivocado no que diz respeito ao combate ao trabalho infantil. A origem deste equívoco está na falta de capacitação/qualificação, que deveria ter sido ofertada pelo ente municipal e não o foi; na falta de sensibilidade com o tema (achar que o trabalho antes de 16 anos é natural, tornando-o invisível); na ausência de um CMDCA efetivo – muitas vezes criado só no “papel” – bem como na falta de estrutura mínima de trabalho ou, ainda, no próprio desconhecimento de quem compõe a rede de proteção do seu município. Tais deficiências devem ser supridas e superadas o quanto antes.

Em conclusão, a partir da conceituação formal da CBO, bem como da base jurídica do ECA e da CF/88, assim como da vontade/compromisso da sociedade, a função do Conselheiro Tutelar está vinculada à ação, ao agir, e jamais à permanência na inércia. A proteção das crianças e dos adolescentes quanto ao trabalho precoce (abaixo de 16 anos de idade) dá-se pela identificação das vulnerabilidades e, a partir desta, pelo acionamento da rede de proteção e tomada de medidas requisitórias cabíveis. No entanto, isso somente será alcançado se houver sensibilidade, esclarecimento e empoderamento sobre o tema e sobre suas atribuições.

Estejam certos: sem Afetividade pelos direitos da criança e do adolescente, jamais terão Efetividade na luta para a qual foram designados.

 

 

CBO – Classificação Brasileira de Ocupações
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
CF/88 – Constituição Federal de 1988
CRAS – Centro de Referência em Assitência Social
CREAS – Centro de Referência Especializado em Assistência Social
MPE – Ministério Público Estadual
MPT – Ministério Público do Trabalho
CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
SCFV – Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos

 


Tiago Ranieri de Oliveira – Procurador do Trabalho e Vice-Coordenador Nacional da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (COORDINFANCIA/MPT).

 

 

 

 

 

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